Henny Slegh é representante do Promundo na região do Grandes Lagos na África e coordenadora da Pesquisa IMAGES (International Men and Gender Equality Survey) na República Democrática do Congo. Neste comovente relato, ela nos apresenta algumas reflexões sobre o trabalho de campo em contextos de guerra.
Hoje fomos parados quando seguíamos para as zonas rurais onde vamos realizar a pesquisa qualitativa. Um coronel tinha sido morto numa emboscada no dia anterior e, por isso, não conseguimos chegar às aldeias. Paramos 8km depois da cidade de Goma, onde vimos um terreno enorme cheio de pessoas em busca de abrigo.
Ao entrar no lugar, nós quatro da equipe de pesquisa fomos imediatamente rodeados por vários homens, mulheres e crianças, vestidos com trapos, encharcados e sujos da chuva e do pó do vulcão. Estão nos observando e olhando, num misto de desespero e esperança, como que a dizer: o muzungu sempre veio, talvez a ajuda chegue em breve.
Me senti pequena, envergonhada, culpada, angustiada e absolutamente impotente: quem sou eu para vir aqui fazer pesquisa? Eu não quero dados, questionários, quero ajudar e parar este mundo ensandecido onde humanos violam humanos através da guerra e da retenção ou através da recusa da ajuda e assistência.
Mas eu não tinha nada para oferecer, apenas eu própria, naquele momento, a partilhar e a ser humana com homens e mulheres que viviam como animais.
Notas de Henny, Goma, 10 de junho de 2012
Pesquisar em contextos de conflitos e pobreza é um desafio enorme. As notas de trabalho de campo que reproduzo acima ilustram algumas das dificuldades que encontramos: questões éticas e morais. Ser testemunha de sofrimento humano extremo, recolher dados de histórias terríveis e não ser capaz de responder, oferecer ajuda, comida, serviços de saúde, apoio financeiro é um desafio tremendo.
Num campo informal de refugiados, conhecemos uma mulher: Rebecca. O seu marido tinha sido morto pelo Mai Mai – um grupo de rebeldes congoleses extremamente violento – em resposta à infiltração do M23 (grupo rebelde composto por Tutsis congoleses que é supostamente apoiado por Ruanda). Rebecca tinha tentado fugir com os cinco filhos, mas foi estuprada por um grupo de cinco homens. Apesar de estar gravemente ferida, conseguiu andar durante dois dias até chegar ao campo, perto de Goma. Tinha febre alta e pegou na minha mão e colocou entre no seu peito. Senti que o esterno estava quebrado.
Não havia assistência médica no campo, nenhum tipo de apoio, porque as autoridades declaravam não existir qualquer tipo de conflito interno na região norte de Kivu. Os congoleses não atacam outros congoleses: os problemas são causados pelos ruandeses, que estão a fazer a guerra. A ONU também não podia agir, uma vez que não havia qualquer pedido da parte das autoridades congolesas. Rebecca estava à espera de um sinal de Deus e pediu-me: por favor, ajude-me.
À medida que o tempo ia passando, a tristeza e impotência que sentimos converteu-se em raiva e determinação em organizar assistência e apoio. Tentamos mobilizar assistência humanitária para várias mulheres que encontramos. Contatamos as redes da ONU em Goma, o que se traduziu numa série de trocas de e-mail simpáticos mas, infelizmente, em nenhum tipo de ação no campo.
Neste pequeno testemunho, não vou desenvolver as dinâmicas políticas que criaram este contexto, mas gostaria de descrever um pouco da realidade que encontramos, uma realidade crua que frequentemente está pouco visível nos nossos relatórios de dados e recomendações.
Não tenho dúvidas sobre a importância dos relatórios e artigos que produzidos, que procuram mudar políticas e chamar a atenção para os efeitos dos conflitos nas vidas de homens e mulheres, famílias e relações de gênero. O estudo IMAGES revelou alguns dos impactos negativos dos conflitos e da pobreza nas relações de gênero: desempoderamento de homens e mulheres, trauma e perda que muitas vezes alimenta nova violência, como descrevemos no nosso relatório (IMAGES República Democrática do Congo, resultados preliminares, 2012).
Neste testemunho, partilho com vocês algumas das histórias não abrangidas pelo relatório, incluindo algumas questões difíceis que permanecem sem resposta. Podemos trabalhar em contextos de conflito de forma a não prejudicar mas sim servir a população? O que devemos fazer em situações de injustiça social e política extremas? Como é que as pessoas envolvidas na pesquisa refletem sobre o questionário que estão aplicando num contexto de conflito?
Pedi a todos os 55 assistentes da pesquisa, todos homens e mulheres congoleses, que escrevessem um pequeno relatório sobre as suas experiências durante a aplicação dos questionários: desafios, dificuldades, retorno dos participantes e opinião geral sobre o estudo.
A maioria destes relatou experiências bastante semelhantes às descritas nas minhas notas de campo: ouviram histórias terríveis, sentiram-se chocados e abalados com tanto sofrimento de homens e mulheres no seu próprio país, sofrimento esse não apenas causado pela mais recente onda de conflito político mas também pela pobreza e várias formas de violência de gênero.
A maior parte dos assistentes tiveram retornos positivos por parte dos respondentes do questionário. Homens e mulheres disseram que estavam gratos pelas visitas dos assistentes de pesquisa, estavam satisfeitos com o tempo e espaço onde contaram as suas histórias e apreciaram ser ouvidos e conversar com pessoas que demonstravam preocupação, empatia e compreensão. Contudo, a maioria dos entrevistados pediu aos assistentes para regressar com ajuda.
“As questões mostram que vocês percebem o que estamos a sofrer. Precisamos de ajuda’’.
A maioria dos assistentes revelou ainda que os participantes declararam que o questionário os tinha ajudado a repensar comportamentos violentos que julgavam até então normais. Outros afirmaram que o questionário lhes tinha permitido partilhar problemas de saúde graves e receber aconselhamento sobre como acessar a serviços de saúde e assistência. Alguns dos entrevistados nunca tinham ouvido falar de direitos das mulheres, porque achavam que a submissão das mulheres era algo natural, derivado do fato de serem mulheres. Apesar de sentirem que a violência não era justa, as questões ajudaram a perceber que estavam certos: não é justa, mas sim abusiva.
Alguns dos inquiridos do sexo masculinos afirmaram que nunca tinham percebido que os seus atos sexuais eram percebidos como prejudiciais pelas mulheres: julgavam ser do seu direito e dever mostrar domínio e masculinidade.
Os assistentes descreveram o processo de pesquisa como uma capacitação: sentiram-se capacitados, com novas competências e conhecimentos que lhes permitia conhecer os problemas da sua gente. Estavam determinados que a mudança era possível sempre que as pessoas têm oportunidade para falar e partilhar problemas. Alguns assistentes revelaram que o questionário lhes tinha aberto os olhos para os efeitos negativos das diferenças de gênero e etnia. Sublinharam ainda a necessidade de respeitar todas as pessoas, independentemente do sexo e etnia.
“Abriu-me os olhos também sobre o meu comportamento em casa, quando ouvia as respostas de outros homens. Eu pensava: eu também faço o mesmo, mas sei agora que está mal. Voltei a casa e pedi desculpas à minha mulher por ter sido tão cruel”. (assistente de pesquisa do sexo masculino)
É difícil traçar conclusões definitivas a partir destas reflexões. Todas demonstram os efeitos positivos e negativos de fazer pesquisa neste tipo de contexto e, na minha opinião, devemos considerá-las como informações importantes para a condução do IMAGES. Um questionário como o IMAGES é mais do que um instrumento de coleta de dados. É também uma coleção de imagens: realidades, estórias, é uma intervenção que convoca a partilha da humanidade, é uma campanha de sensibilização e uma capacitação em igualdade de gênero.
Coordenar o IMAGES na República Democrática do Congo foi uma experiência pessoal cheia de desespero, horror, bem como amizade, empatia e profundo respeito pela força dos homens e mulheres que encontrei.
Depoimentos dos assistentes de pesquisa:
“Gostaríamos de demonstrar a nossa gratidão ao Promundo/Sonke por terem confiado nas nossas capacidades enquanto assistentes de recolha de dados e por nos terem facultado competências que nos permitiram ouvir o nosso povo”.
“Foi muito difícil falar e ouvir estas pessoas e não ter nada para lhes oferecer, como comida ou dinheiro”.
“Esperamos que o Promundo/Sonke informe a comunidade internacional de que precisamos de paz e apoio para parar a violência e as violações extremas do nosso povo”.
“Muitas pessoas pediram-nos para voltar e ajudá-los: esperamos que o Promundo/Sonke regresse e organize intervenções que possam ajudar de fato estas pessoas”.
“Estamos muito agradecidos por termos recebido a visita de um homem educado que nos ouviu e nos tratou com respeito. Percebemos que forçar as mulheres a ter sexo pode ter consequências muito negativas para elas. Esperamos que hajam mais encontros como estes e que nos ajudem a mudar”.
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