Por Letícia Serafim, Coordenadora de Comunicação Promundo-Brasil
O recente caso da menina Micaella, de 4 anos, que foi morta por espancamento pela madrasta no Rio de Janeiro trouxe à tona a questão da omissão da sociedade perante casos de violência contra crianças. A velha lógica que produz ditados como “em briga de marido e mulher, não se mete a colher” ou “roupa suja se lava em casa”, usada para se referir a situações em que o público não deve adentrar a vida privada, muitas vezes, acaba por legitimar que situações de violência se perpetuem em diversas famílias, até chegarem a desfechos trágicos como o de Micaella.
Quando nos referimos à forma com que pais educam seus filhos, a máxima de não intervir na vida doméstica e familiar assume contornos ainda mais rígidos, uma vez que em nossa sociedade é culturalmente aceito e, até naturalizado, que pais usem de palmadas, castigos físicos e agressões verbais para “ensinar” aos filhos aquilo que “a vida ensinaria de maneira mais violenta, caso não o façam”. Seguindo essa lógica, temos o caso da Micaella que, como mostra a matéria de “O Dia”, vizinhos relatam já ter conhecimento de que a menina era frequentemente espancada e maltratada pela madrasta. Na escola, professoras percebiam machucados e comportamentos que pressupunham maus tratos. Ninguém achou que devia intervir.
De acordo com matéria de O Globo, o filho da madrasta de Micaella, afirmou ter procurado o Conselho Tutelar, mas que as medidas não foram tomadas. Por sua vez, o Conselho Tutelar nega ter sido acionado. A omissão e conivência do pai da menina diante dos frequentes maus tratos sofridos pela filha é algo que chama atenção. No relato do filho da madrasta podemos perceber o quanto o homem parece estar despreparado para assumir os cuidados da filha, necessitando delegar esse papel a alguma mulher: “Quando chamamos o Felipe, o pai da Micaella, para contar que a minha mãe estava agredindo (…), ele foi indiferente. Disse que tomaria a decisão dele. Se negou a deixar a Micaella para ela (uma tia) criar”, disse. Podemos concluir que padrões de masculinidade, que afastam os homens do papel de cuidadores, incluindo o de seus filhos e filhas, ajudam a produzir esse tipo de comportamento.
O direito de crianças e adolescentes à segurança e a viverem livres de violência já está expresso no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em 2014, houve mais uma importante vitória dos movimentos pelos direitos da infância que foi a aprovação da Lei Menino Bernardo. A lei visa proibir o uso de castigos físicos e tratamentos cruéis ou degradantes na educação de crianças e adolescentes, não só pelos pais, mas também pelos integrantes da família, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar deles, trata-los, educá-los ou protegê-los.
Na época de sua votação e aprovação, o projeto de lei sofreu grande resistência de setores da sociedade que o consideravam uma intervenção do Estado na vida familiar. São os mesmos argumentos que permitiram que casos como o da Micaella e do Bernardo, o qual a lei homenageia, acontecessem.
Apesar dos avanços, o ‘Dossiê Criança e Adolescente 2015’, do Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP), mostra que a violência contra as crianças continua crescendo. Entre 2010 e 2014, o número anual de vítimas menores de 18 anos passou de 33.599 para 49.276, um crescimento de 46,7%. O documento revela ainda que a maior parte da violência contra a criança ocorre muitas vezes na sua própria residência. E é cometido geralmente por quem passa mais tempo com a criança (pai, mãe, avó, cuidador, babá, vizinho, etc.): 56,1% dos casos.
Pesquisa realizada no Canadá durante 20 anos revela que a punição física em crianças está associada ao aumento dos níveis de agressão infantil, além de não ser mais efetivo em estimular a obediência quando comparado a outros métodos. Além disso, a punição física durante a infância está associada a problemas de comportamento na vida adulta, incluindo depressão, tristeza, ansiedade, sentimentos de melancolia, uso de drogas e álcool, e desajuste psicológico geral.
A pesquisa “Homens que Cuidam” realizada por Promundo demonstra que pessoas que cometem violência contra os filhos, foram vítimas de agressões ou as testemunharam na infância, ou seja, trata-se de um ciclo de violência que tende a se perpetuar.
O Promundo, enquanto membro fundador da Rede “Não Bata, Eduque!”, vem desenvolvendo ao longo dos últimos 15 anos ações voltadas para a prevenção dos castigos físicos e humilhantes contra crianças e adolescentes e baseando sua atuação na escuta e no envolvimento da criança no seu processo educativo. Reconhecer crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direito, que merecem ser respeitados e acolhidos em suas necessidades, é a base para se transformar essa cultura de violência que ignora a participação e autonomia da criança na sua própria educação.
Além disso, é preciso que a sociedade supere a ideia de que a proteção da criança é exclusividade dos pais. Vizinhos, parentes, professores e toda a rede de proteção devem estar atentos a casos de negligência e abuso contra crianças. Um dispositivo importante de proteção é o Disque 100, ferramenta gratuita e anônima de denúncia.
Mas não para por aí. Mudanças mais profundas na sociedade devem ser promovidas. A Lei Menino Bernardo é fundamental para se iniciar esse processo, mas ainda há necessidade de investimentos em micropolíticas capazes de mudar toda uma cultura que legitima uma educação baseada na palmada e nos castigos físicos e verbais. Ensinar alternativas de cuidado e de educação positiva a pais e mães e envolver os homens, cada vez mais, no cuidado dos filhos e nas tarefas domésticas, são caminhos promissores. Só assim teremos uma sociedade segura para as crianças e com igualdade entre homens e mulheres.
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