Entrevista com nosso Consultor de Projetos e Programas, Luciano Ramos.
Entrevista, transcrição e edição: Bruna de Oliveira Martins
Luciano Ramos é um homem negro, historiador por formação e especialista em políticas públicas, Consultor de Programas e Projetos do Promundo, autor do livro infantil Quinzinho e, recentemente, foi escolhido pela UNESCO junto a outros homens para ser um dos embaixadores da campanha Hombres, Positivamente, devido à sua trajetória e militância a favor da igualdade de gênero e das masculinidades positivas. E não é surpreendente a nomeação, uma vez que a trajetória de Luciano é bastante expressiva e demonstra grande conhecimento nas áreas. A fim de conhecermos melhor o prêmio, a campanha e, sobretudo, um pouco do caminho de Luciano, reproduzimos aqui uma entrevista realizada após o anúncio da eleição.
Luciano Ramos, em capacitação ocorrida em 2019
1 – Para começar, gostaríamos de saber qual é o prêmio que você recebeu e como foi o processo? Houve algum tipo de submissão em algum edital, projeto ou programa?
Luciano: É um edital, mas é um edital que parte de uma indicação. Eu recebi uma indicação de uma organização chamada Usina da Imaginação, que foi feita pelo fato de eles me conhecerem através de um financiador comum aos projetos do Promundo ao longo de muitos anos, a Bernard Van Leer Foundation e por ter feito algumas participações em eventos da Usina da Imaginação como seminários, encontros de trocas de saberes quando os temas são masculinidades e paternidades. Por isso, então, que meu nome foi sugerido e eu me disponibilizei para participar do processo. O prêmio se refere a ser reconhecido como um modelo de masculinidade positiva no Brasil e ser embaixador do tema junto a outros homens de outros países, através desse programa e dessa campanha da UNESCO.
2. Sabemos que dois temas mais trabalhados por você em sua trajetória profissional são masculinidades negras e paternidades negras. Seriam esses seus enfoques principais, certo? O prêmio refere-se a estes recortes?
Luciano: Na verdade, o prêmio não tem esse recorte étnico-racial, é algo abrangente. É o tema [da masculinidade e da paternidade] ampliado. É óbvio que, sem dúvida alguma, ter esse posicionamento com o recorte étnico-racial para mim é importante e esses foram alguns dos pontos que caracterizei na minha entrevista [com a UNESCO]. Sim, sem dúvida, quando eu estou falando de masculinidades e paternidades, eu estou falando para todos os homens e todos os pais, mas tem sido um processo militante importante para mim, discutir esses temas com recorte racial e tenho feito isso tanto no tema da masculinidade quanto no tema da paternidade. Mas, o edital como um todo, ele não falava da paternidade negra e da masculinidade negra. Ele falava de masculinidade e de paternidade e, nesse sentido, quem traz essa interseccionalidade somos nós.
Por outro lado, e esse é um ponto muito importante: o que a UNESCO estava buscando nesse processo também eram homens que fazem a discussão da masculinidade e da paternidade visando a igualdade de gênero, a trazendo como ponto central. É um ponto muitíssimo importante para pensar, pois não falamos de masculinidade ou de paternidade para que nós, homens, nos sintamos mais confortáveis. Falar de paternidade ou de masculinidade, para mim, tem o objetivo de fazer isso para o alcance da equidade de gênero e, no final dessa jornada, alcançar a igualdade de gênero. Porque, ainda assim, por mais que esse modelo de masculinidade machista acabe por incidir no cotidiano dos homens, antes de tudo ele é nocivo e violento para as mulheres e para a população LGBTQIA+. Então é por isso que eu trabalho com o tema da masculinidade: para que a gente olhe nesse âmbito dando mais importância.
3) Não é para todos que fica clara a ligação entre equidade de gênero, paternidade e masculinidade. Já que se trata de algo muito abstrato no sentido conceitual, porque a ligação entre pensar sobre masculinidade e paternidade e, simultaneamente, pensar na equidade de gênero não é assim tão direta para muita gente e é complexo pensar nas implicações que isso tem no cotidiano das pessoas. A ligação não é evidente para todos e todas. Se alguém que é leigo ou leiga no assunto te perguntasse, como você explicaria de maneira simples e direta a relação entre masculinidade e paternidade e a equidade de gênero?
Luciano: Então, no mês passado, que foi o mês das paternidades, eu não consegui produzir muita coisa além dos projetos vinculados ao Promundo. Mas eu escrevi uma carta de “um pai de menina” falando para outros pais. E eu estou falando disso porque vai me fazer chegar ao lugar sobre o qual você está me questionando. Nessa carta eu escrevia como um pai de menina, preocupado com o mundo que minha filha vai encontrar. Assim,
“olha essa noite eu acordei no meio de um pesadelo porque minha filha me olhava chorando dizendo que ela não pode sair à noite porque ela pode ser violentada sexualmente, ela pode ser estuprada. Ela me dizia que, mesmo ela estudando muito, ela não vai encontrar um mercado de trabalho que valorize o trabalho dela tal como deveria ser valorizado. Ela me dizia, ainda, que as relações que ela poderá estabelecer, se forem relações no âmbito da heterossexualidade, serão relações que correm o risco de serem muito violentas e ela corre o risco de ser desrespeitada por esse parceiro. E se for uma relação homossexual, ela corre o risco de ser morta por essa sociedade que não aceita as mulheres lésbicas e, se for uma relação bissexual também. Ela corre o risco de não ser compreendida dentro desse modelo de sociedade.”
O texto também tinha outras vertentes, ele falava de outras áreas da vida do ser humano. Neste texto, eu dizia assim também: “Olha, você que é pai de menino, precisa educar seu filho. Porque não adianta eu fazer isso dentro da minha casa, porque não dá para eu criar minha filha dentro de uma bolha. E você que é pai de menina também precisa se conscientizar desse processo para fazer uma educação mais igualitária porque a sua filha vai se deparar com esse mundo.”
Bem, respondendo diretamente à sua pergunta, quando a gente pensa em paternidade, masculinidade, equidade de gênero e igualdade de gênero, a gente está pensando em um mundo onde as relações são estabelecidas de uma forma diferente, onde elas são estabelecidas de um novo lugar. Ao mesmo tempo que, sem dúvida alguma, se a gente tiver o alcance da igualdade de gênero a gente vai conseguir ter meninos que serão educados de uma forma diferente: vamos ter meninos podendo expressar as suas emoções, ter meninos podendo entender que não estar naquele momento em um bom espaço de trabalho não significa que ele falhou ou que deu errado na vida. A gente vai ter meninos sendo educados para uma prática sexual que não seja à base da violência e que eles não tenham medo até mesmo de dizer que não estão a fim de realizar uma prática sexual. Vamos ter meninos que consigam estabelecer relações através do diálogo e meninas dentro da sociedade que conseguem avançar em toda a sua plenitude porque são reconhecidas, respeitadas e empoderadas.
Então, quando se está falando disso, queremos dizer que a igualdade de gênero é muito importante para um novo modelo de masculinidade, que é necessário e que é urgente. Porque não é possível que nós estejamos em 2021 com um modelo de masculinidade que é tão machista e violento e que tem tanto horror à feminilidade, porque, por fim, é isto: um horror à feminilidade. Quando eu digo para que o outro não chore porque “você não é menininha” ou “anda direito porque você não é mulher” ou “eu vou te respeitar porque você é homem” e “olha aqui o que eu estou dizendo é palavra de homem”, então é esse horror ao feminino, esse horror a qualquer expressão da feminilidade. Por que essa sociedade mata homens gays, por exemplo? Porque esses homens gays romperam com o “pacto” da masculinidade. Como é que alguém pode romper com esse pacto da masculinidade, sabe? Então esses pontos são importantes para pensarmos nessa questão da masculinidade e da equidade de gênero, da paternidade e da igualdade de gênero que são essenciais.
4) Em seguida, outras duas perguntas: quais foram os critérios de seleção e quais homens estão na lista com você? Uma vez que esse prêmio te coloca em uma rede de homens que está pensando a masculinidade, o que te chamou atenção na escolha desses homens? O que te conecta com a trajetória desses homens? E sobre o nome da campanha: “hombres positivamente”, o que, em sua visão pode significar o “positivamente”?
Luciano: Na verdade, eu ainda não conheço os outros homens. A gente deve ter, pelos próximos dias um encontro para conhecer essas outras pessoas. A única informação que temos é que um vídeo que eu gravei, uma entrevista que eu fiz com um grupo da UNESCO, será apresentado na Assembleia Internacional da UNESCO entre outubro ou novembro desse ano. Me parece que também tem uma participação pequena nessa assembleia para falar um pouco sobre o tema e eu estou muito interessado em saber quem são essas outras pessoas de outros lugares do mundo.
Também quando você pergunta sobre o tema da campanha eu acho super interessante a UNESCO trazer o tema da masculinidade com tanta força para dentro da própria UNESCO. A UNESCO já trabalha com o tema da igualdade de gênero em cima do objetivo cinco dos ODS [Objetivos de Desenvolvimento Sustentável], mas ele vem com mais força agora a partir da masculinidade. Eu acho que o tema da masculinidade é o grande tema desse século. Porque, mais do que nunca, já se entendeu que não é possível trabalhar igualdade de gênero e equidade de gênero sem trazer o tema da masculinidade para o centro do debate, porque senão você trabalha apenas o empoderamento feminino e, eu digo isso sempre: não é pouca coisa o que se está em debate.
O empoderamento feminino tem que ser feito, ele tem que ser trabalhado, mas a também temos que trabalhar com os homens que são os autores da violência. Se a gente não trabalhar essa parte, ficam as mulheres sobrecarregadas para lidar com tudo aquilo que sofrem de violência e ainda em algum momento têm que dar conta de se relacionar com esses indivíduos violentos. E aí eu estou falando “se relacionar” no sentido mais amplo da palavra, seja no mercado de trabalho, seja na convivência social, seja em casa, seja na relação íntima para as mulheres que se encontram nas relações heterossexuais.
Então assim, o que é que estamos prevendo? Olhar a masculinidade positivamente é necessário, é preciso e já passou da hora. E um outro ponto importante que, neste sentido, a Unesco reconheceu e que é uma coisa que no trabalho do Promundo a gente já reconheceu a muito tempo é que homens seguem os exemplos de outros homens, homens escutam outros homens, quanto mais humana for a minha prática mais próxima ela é desses homens.
Eu tenho muito receio sempre quando alguém me coloca em uma posição de especialista do tema, porque o especialista muitas vezes parece alguém muito distante daquilo que é a realidade daquele indivíduo. Aquela coisa assim “vem viver a minha vida para ver se você vai continuar fazendo esse discurso”, é um pouco isso. Nesse sentido, eu até diria que eu sou um machista em desconstrução. O tempo todo estou aprendendo, o tempo todo estou escorregando e voltando e estou tentando colocar em prática porque é isto: a partir do momento em que eu achar que eu sei tudo sobre o tema, eu me afasto das pessoas. E essa não é a intenção.
5) Agora, gostaríamos de saber um pouco da relação com prêmio em si e com o Promundo, porque no Promundo você atua sobre várias vertentes e, apesar de você ser consultor de programas, você também atua como educador social, como uma pessoa que trabalha junto às metodologias, que revisa as metodologias. Você está lidando com várias questões e com indivíduos oriundos de diferentes contextos, inclusive lidando com pessoas que estão em contextos de vulnerabilidade social. Pensando na sua atuação no terceiro setor e no Promundo especificamente, como você vê o prêmio e como impacta no trabalho que fazemos no Promundo? Você acha que a sua escolha tem a ver com alguma metodologia, projeto ou trabalho que a gente faça que se conecte com a proposta da UNESCO?
Luciano: Vou dividir a resposta em duas partes, porque você abordou muitas coisas. Primeiro, eu poderia fazer um trabalho mais burocrático e de escritório e de gestão e ficar só nele. Mas me interessa o campo, me interessa ir dar uma capacitação em Manaus, me interessa ir dar uma capacitação no Rio Grande do Sul, me interessa. Assim como me interessa ir em uma comunidade, ir aqui ao Morro dos Prazeres no Rio de Janeiro, que é onde a gente está desenvolvendo um projeto comunitário para entender esse trabalho se desenvolvendo. E como me interessa ir à Ilha do Governador para fazer um projeto de paternidade para fazer as oficinas com os homens. Isso me interessa muito. Me interessa porque eu acho que é ali que eu encontro as possibilidades de fazer inovações no material que nós temos ou nos materiais que nós temos. Quando, por exemplo, eu fui pro campo em 2018, 2019, eu vi que os homens estavam querendo discutir a vida sexual no pós-parto, sabe? Que era algo muito novo e que a gente não tinha dentro do Programa P, mas que para os homens aquilo era extremamente necessário e importante. Aquilo criava até mesmo um conflito nas relações que eles tinham com as parceiras, porque pouco se dialogava sobre o tema. Assim como quando eu vou para o campo eu às vezes percebo que essa metodologia que a gente tem é maravilhosa, mas ela não dialoga tanto assim com os homens que estão nessa classe social.
Então, isso para mim é importante como também é importante ir dar uma capacitação para profissionais da assistência social. Isso é necessário para o meu trabalho, porque a coordenação de programas também é isso: ela tem um tempo, óbvio, que você fica ali dentro de uma sala, escrevendo, fazendo gerenciamento dos processos, mas também ela demanda ir para o campo e entender como o campo está funcionando.
Eu necessariamente gosto quando há uma metodologia nova e ir lá e implementar essa metodologia para ver como ela está funcionando. E acho que isso nos sensibiliza também, eu acho que todo gestor tem que ir para o campo para entender como é que o campo funciona, porque senão você fica engessado pelo espaço de escritório.
Agora, quando a gente está falando do prêmio e do Promundo, tem tudo a ver, porque é o Promundo que me dá a dimensão de poder fazer o que eu faço hoje em um ambiente nacional, é o Promundo que me dá, pela história e pela capilaridade que ele tem, o poder dialogar com o Brasil e com outros países. E aí sim, sem dúvida alguma, eu vou também fazendo algumas outras ações paralelamente, como o próprio livro infantil [Quinzinho] que consegue dialogar sobre masculinidade que consegue falar sobre masculinidade para crianças ainda na primeira infância.
Livro Quinzinho, de Luciano Ramos. Você pode adquirir o livro no site da Editora Travessa
Mas sem dúvida alguma quem inaugura o tema da masculinidade para mim é o Promundo, então é pelo Promundo que eu chego no tema da masculinidade e das paternidades e é ali que eu vou me desenvolvendo para avançar em várias áreas. E eu acho que o prêmio não é só meu, ele é de um monte de gente porque eu não construí sozinho, não é possível fazer isso sozinho. Ele é um pouco isso tudo.
6) Por último para finalizar, nós já falamos da sua trajetória profissional e que, de certa forma se mistura com a militância. Mas no âmbito pessoal mesmo, queríamos saber como isso te impacta enquanto pai de uma menina e enquanto homem que se relaciona com mulheres e que é casado, considerando esse pano de fundo machista resultante de uma estrutura social machista. Como que pessoalmente isso te afeta, não só o prêmio em si, mas toda a sua trajetória com masculinidade e paternidade?
Na verdade, é muito difícil. Eu pensava nisso hoje quando estava saindo de casa. Eu acho que o prêmio me dá uma responsabilidade a mais e essa responsabilidade é de poder executar uma masculinidade mais equitativa. Mas, a gente é criado e ensinado, socializado em uma sociedade extremamente machista. Romper com esse pacto do machismo é algo muito violento, é algo muito difícil, é algo muito doído. É algo muito sofrido, primeiro porque o machismo é sedutor, ele é confortável e ele é prazeroso, sabe? Eu sempre digo: desconfie de um homem que comece dizendo assim “não, porque o machismo é só sofrimento”. Ele não é. Ele é confortável, ele é prazeroso e ele é extremamente sedutor.
Você é convidado a ser aplaudido em uma roda de amigos o tempo todo, você vai fazendo parte de uma lógica de poder ou de reprodução de poder. Então quando você é um homem negro, sobretudo, e estamos falando sobre masculinidades hegemônicas e subalternas, a gente está falando sobre reprodução de poder. Mas é um convite que, por exemplo, a masculinidade branca faz à masculinidade negra o tempo todo que é assim: “faça dessa forma, faça dessa forma, faça dessa forma” que você vai chegar a um lugar de poder. E aí tem todo um jogo posto nisso, você não vai chegar nisso nunca. Quando você toma consciência disso, também causa um sofrimento. Mas você é convidado por esse lugar o tempo todo, e aí no cotidiano isso é bem difícil porque tem uma questão egocêntrica, egóica dentro disso que é assim “ah, se eu fiz alguma coisa que a sociedade diz que é das mulheres fazerem, eu preciso ser aplaudido por isso”, então você espera o aplauso.
E você vai romper com isso e quando você rompe com isso, as pessoas querem te colocar nesse lugar o tempo todo. E a gente [Luciano e esposa] tem uma divisão do trabalho em casa e com a bebê que é muito 50/50. E é 50/50 total, a gente divide tudo, desde quem vai preparar o leite da madrugada e quem é que vai dar o leite da madrugada. Então, a gente compartilha tudo isso. No dia de expediente em casa, quem é que vai ficar na parte da manhã, quem é que vai ficar na parte da tarde. Tudo isto está posto dentro da relação.
Fora isso, na relação com a minha parceira, aí é mais difícil ainda porque somos convidados o tempo todo a colocar na mesa esse machismo. E é bem difícil, mas temos um pacto que é: quando for machista, diz que está sendo machista. E como eu também estou em uma relação interracial, temos um pacto que é ótimo, então quando for racista, diz que foi racista. Então a gente coloca isso na mesa o tempo todo, mas o racismo e o machismo são elementos que estão aqui o tempo todo. Ela, enquanto uma mulher branca, naturalmente é racista. Eu, enquanto um homem heterossexual, naturalmente eu sou machista.
A gente está o tempo todo ali, lidando com essas tensões e tentando criar um ambiente saudável de relacionamento. É tenso, mas é necessário porque quando isso vem à tona dentro de casa, a gente se organiza para colocar isso fora. Mas é um processo, é um processo porque o tempo todo você é convidado a não cair numa ideia de ser ridicularizado. Porque tem muito isso: “lá vem o fulano chato que vai falar sobre aquele tema ou que vai nos criticar por isso, isso e isso”.
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