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Entrevista com Barbara Soares

Barbara Musumeci Soares é socióloga e pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), da Universidade Cândido Mendes. Aproximou-se do tema gênero no início dos anos 90 quando realizou uma pesquisa sobre a situação de violência contra a mulher junto às Delegacias da Mulher. O tema da violência doméstica, desde então, tem margeado sua trajetória profissional e acadêmica. É autora do livro Mulheres invisíveis: violência conjugal e novas políticas de segurança.



1) Como você vê os avanços nas políticas públicas para as mulheres nos últimos anos?



Acho que houve grandes avanços: a visibilidade que a Lei Maria da Penha trouxe para a questão da violência doméstica, o reconhecimento de que é um problema que tem que ser enfrentado com seriedade. A desnaturalização ajuda a diminuir a violência. O fato de as mulheres saberem que isto não é tolerável é importantíssimo. Algumas medidas de proteção que estão presentes na Lei Maria da Penha também são importantes.


Acho também, baseada na minha trajetória de observação, que houve retrocessos, que estão no fato de a Lei Maria da Penha apostar na punição, na criminalização, no crime como alguma coisa absoluta. Isso eu acho que é um problema porque na violência conjugal, embora o componente de gênero seja importantíssimo, é uma variável entre outras. Acho que o movimento feminista considera que qualquer  violência conjugal, envolvendo a mulher,  expressa uma situação de dominação de gênero. Não tem pesquisa no Brasil que mostre que as mulheres são as únicas vítimas. Ao contrário, as pesquisas que focalizaram homens e mulheres mostram que o grau de violência das mulheres é muito maior do que se quer admitir. Enfim, o problema é o de considerar que sempre que há uma mulher envolvida, estamos diante do modelo de violência resultante da dominação de gênero. Evidentemente, existe uma violência de gênero, uma violência da dominação, do silenciamento, do cerceamento, essa violência clássica contra a mulher, mas o que está acontecendo é que este é um tipo ideal, um modelo. E esse modelo está sendo confundido com a realidade – que é muito mais complexa.

Saímos da Lei 9.099, que tratava qualquer tipo de violência doméstica, mesmo que fosse brutal,  como um mero conflito, passível de ser resolvido com pagamento de cesta-básica e transações penais  e passamos para um outro extremo em que qualquer situação de violência que tenha uma mulher envolvida é vista como uma violência de gênero, a ser enquadrada na Lei  Maria da Penha, que tem que ser criminalizada. Essa transformação do tipo ideal de violência na realidade, leva a simplificações, a visões autoritárias.

A Lei trabalha com a ideia de que a mulher é sempre a vítima e não leva em conta a existência da relação. Por mais que exista a dominação de gênero, existe também uma relação. Ao negar a relação, nega a possibilidade de construção de pontes, da reformulação de conceitos que favoreçam mudanças de comportamento. Quando um homem bate numa mulher, num contexto de dominação de gênero, não faz isso só porque é mais forte. Ele bate porque na concepção dele aquela mulher é “batível”. No imaginário dele é possível, faz sentido bater naquela mulher. Isso significa que ele tem uma certa imagem dessa mulher ou das mulheres em geral. Acho que nossa política, hoje hegemônica, impede que as pessoas reconstruam suas imagens, não permite refazer suas ideias preconceituosas, estereotipadas. Como o homem vai mudar essa imagem que tem da mulher, se quando ele bate tudo em volta conspira para reafirmar que ele é esse machão que bate em mulher? Então, vai para a cadeia que é lugar de machão que bate em mulher e lá ele vai ficar mais “macho” ainda. A política cristaliza o que está na base da violência, que é esse abismo entre homens e mulheres (em situação de violência), esta visão estereotipada. Sem falar que neste processo, você coloca a mulher no lugar da vítima universal, que não pode formular um discurso de sua própria história. O que me incomoda mais neste caminho da punição e da proteção a qualquer custo é que as mulheres acabam sendo silenciadas, assim como elas eram na relação de violência clássica. Quem fez pesquisa sobre violência contra a mulher ouviu que as mulheres não queriam que os maridos fossem presos, salvo exceções quando as mulheres se sentiam gravemente ameaçadas. O discurso, nos balcões das delegacias, geralmente era: “Doutor, eu quero que o Sr. dê um susto nele”. As mulheres que se quer proteger não foram, de fato, ouvidas, porque se acreditou que elas, por serem vítimas de violência, estariam acuadas e, portanto, incapacitadas para expressar suas próprias demandas. Sabemos, além disso, nosso sistema penitenciário não ajuda os homens que são presos, seja por 48, 72 horas, uma semana, o que seja, a repensar seu papel no tabuleiro das relações familiares.

2) Recentemente o Supremo Tribunal Federal decidiu que não só a vítima pode denunciar a agressão, a  ADIn 4424 (Ação Direta de Inconstitucionalidade). O que coloca a questão da violência no âmbito do interesse público. Como você vê esta questão?O problema que eu vejo é que  o discurso da mulher em situação de violência não existe, não aparece. Ela só fala quando vai dar queixa, depois se transforma em um número, uma estatística. E para ser acolhida pelo sistema  acaba tendo que incorporar um discurso que não é o dela. O discurso é: “Você é vítima de violência, violência é o que nós, os técnicos, entendemos como violência, o que você pensa sobre violência, suas percepções, seus limites, seus níveis de tolerância não são considerados. Então vamos fazer uma lei, vamos prender seu marido a despeito de sua vontade e você não terá mais como dizer que não quer o processo”. Me parece que a ADIn traz isso. A lesão corporal dolosa no contexto da violência doméstica passa a ser um crime de ação pública incondicionado, ou seja, a mulher não precisa nem ir na delegacia, basta alguém denunciar. Quando a mulher chega lá, deixa de ser a Dolores da Silva, que tem um nome, uma história, uma trajetória, que tem uma visão daquilo que está acontecendo com ela e tem uma percepção daquela relação, ela deixa de ser isso e passa a ser a vítima de violência doméstica. Com isso, ela perde a possibilidade até de definir aquilo que ela considera que está vivendo. São processos que levam a uma despersonalização que, no fim das contas, é o contrário do empoderamento.

Há 10 anos a Perseu Abramo fez uma pesquisa só com mulheres e quando se faz uma pesquisa só com mulheres se tem uma determinada visão. Agora fez com homens também. O que se  revelou foi uma frequência de violências praticadas pelas mulheres também muito significativa. Existe um maniqueísmo, um dualismo que fixa  as pessoa num papel, impedindo que elas mudem. Essa que é minha divergência com a ideologização total deste problema. O que a gente quer? Acabar com a violência ou provar que os homens são  violentos e devem ser colocados na cadeia? A impressão que eu tenho é que quando entramos em um processo de polarização, estamos querendo diminuir a violência até certo ponto, que é o que nos permite reiterar nossa identidade. Uma das razões alegadas para a Lei Maria da Penha proteger só as mulheres é  o fato de as mulheres terem sido prejudicadas durante muitos anos pelo sistema de justiça. Eu acho esse argumento um pouco falacioso. Creio que a ideia da ação afirmativa é tratar desigualmente os desiguais para restaurar a igualdade. Penso que a Lei Maria da Penha introduz uma desigualdade para gerar  outra desigualdade. A mesma pessoa cometendo o mesmo crime, dependendo da vítima, vai enfrentar sistemas de justiça diferentes. Qual o problema de uma lei para proteger e punir quando necessário – porque é necessário mesmo, às vezes, tirar uma pessoa de circulação – que beneficie os homens também? Se a tese de que os homens não apanham, só batem, for verdadeira, nenhum homem vai ser beneficiado e não haverá problema. Se não for verdade, você inclui. Por que excluir? Não se trata de soma zero!

3) A Lei Maria da Penha tem uma característica importe que é a visibilidade que você falou. Hoje, todo mundo conhece e sabe que a violência contra a mulher tem consequências, o que pode ser um fator inibidor da violência. Quais medidas precisam ser implementadas para que a Lei não tenha só essa característica punitiva que você se refere?Tem as medidas protetivas que são instrumentos legais muito bons para afastar o homem autor de violência. Mas vejo os Grupos de Reflexão como uma das medidas promissoras que podem vir a contribuir porque são espaços que permitem pensar de uma outra forma. Como alguém vai deixar de ser “o agressor” se tudo em volta diz que ele é agressor, todo mundo o vê como agressor, o trata como agressor? Nessas condições, como é possível a pessoa se movimentar para sair desse lugar? O Grupo de Reflexão tem esse potencial, além de permitir as pessoas de repensarem suas concepções, ao se verem espelhados nos outros homens autores de violência, e até por favorecer um espaço para os homens falarem coisas que eles nunca falam. É muito rico como possibilidade, mas ainda não foi testado em escala. Entrou na Lei como forma de autorização, ou seja, o juiz pode ou não encaminhar para o Grupo de Reflexão. É um avanço, tem que estar na Lei mesmo que não seja obrigatório, mas ainda precisa se fazer uma normatização, ou seja, regras mínimas de funcionamento. Hoje, há vários desses grupos funcionando nos Juizados da violência doméstica, mas não existe ainda um controle sobre a qualidade e a consistência desses trabalhos.

Antes da ADIn, o processo entrava na Vara de Violência Doméstica, em muitos casos, o juiz suspendia o processo e mandava o autor de violência para o grupo. Ele cumpria o programa e, quando não cumpria, os técnicos comunicavam o fato ao juiz. Se cumpria, os técnicos faziam um relatório e o juiz,   baseado nessa avaliação, aplicava uma pena ou outra, ou até arquivava o processo. Agora, teoricamente, está proibido suspender o processo, só se pode encaminhar para os grupos como pena. Esse movimento punitivista foi se reforçando e agora parece haver um  movimento linear de denúncia – processo – acusação – sentença – cumprimento de pena.

Com isso, a abordagem de algo que é da ordem da relação humana, do vínculo entre duas pessoas suprime todo o espaço para qualquer um dos dois (homem e mulher)  expressar seus anseios, demandas, desejos, percepções etc. Como se elimina do problema sua parte essencial que é a relação? O fato de se reconhecer que é uma relação, não significa dizer que os dois são culpados ou cúmplices e que se trata de problema de marido e mulher e que não se deve mete a colher. Não é isso. Acho que já superamos essa etapa e já podemos encarar a violência doméstica  sem precisar negar uma de suas dimensões centrais – que é a relação.

Além disso, sabemos que as definições de violência mais refinadas, que levam em conta a interação de múltiplas causalidades (da Organização Mundial de Saúde, por exemplo) postulam, para definir a violência, uma relação dinâmica entre os aspectos pessoais, relacionais, comunitários e sociais. A ideia da violência como mera atualização do modelo da dominação do homem contra a mulher supõe,  inclusive, que a sociedade não muda.  Mesmo se, ao sairmos desse modelo, podemos pensar que se o homem batia antigamente para dominar a mulher, muitas vezes ele bate hoje porque não domina mais. A sociedade muda também nesse eixo das relações de dominação. Pensar somente no agressor, de um lado e na vítima de outro, no homem que bate e na mulher que apanha, resulta em uma visão muito simplista. É uma perspectiva dualista e fixista, que amarra os personagens em papéis rígidos, impedindo que haja uma ponte para reconstruir as concepções, as possibilidades de diálogo. Quando falo em diálogo, me refiro ao diálogo no plano social, porque esses personagens circulam pelas situações, não estão amarrados. Claro que as pessoas têm que se responsabilizar pelos seus atos, mas o problema é que a nossa maneira de responsabilizá-las é engessar nos estereótipos e dizer: “Você é e sempre será aquilo que eu estou dizendo que você é”. Quando digo diálogo refiro-me à possibilidade de ouvir. Ouvir as mulheres, ouvir suas demandas, ouvir os homens e produzir situações em que eles ouçam outras vítimas. Em suma, que todos encontrem um lugar de escuta que, ao invés de congelar personagens e posições, inspire mudanças, revisões e transformações.

Tenho pensado na criação de Grupos de Reflexão com homens e mulheres. Nunca juntar o homem que bateu e sua mulher, mas grupos de homens que bateram e mulheres que apanharam. Esse seria um exemplo de processos de escuta. A violência é o não-diálogo. Quando um homem violento olha a própria mulher produz aquele olhar cheio de premissas que ele criou sobre aquela mulher. Imagino que encontros como esses pudessem proporcionar estes pequenos deslocamentos no olhar, no ouvir, que fossem mudando aos poucos a visão que cada um tem do outro. Mas é um trabalho difícil, cada grupo só comporta 15, 20 pessoas, são seis meses, manter o grupo funcionando é trabalho duro. Eu acompanhei um grupo tanto de mulheres quanto de homens e me mobilizou muito, acho que é muito promissor como possibilidade. Acho que precisamos inventar muitos outros. Arregaçar as mangas e pensar em processos não violentos para enfrentar a violência doméstica.

4) Segundo dados recentes da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, quase 60% das mulheres que fizeram denúncias de violência não dependem financeiramente do homem agressor, a dependência é emocional. Como você vê esta questão?É uma relação. Nesse processo todo, exigimos que as mulheres tratem os maridos como se fossem ladrões anônimos. É uma relação, existe uma história comum, projetos, amor, sentimentos contraditórios, vínculos, compromissos, uma imagem social. Uma relação é uma construção, principalmente afetiva e emocional. E a violência doméstica não é como um assalto. Um dia um fala mais alto, no outro dia fala uma grosseria, no outro dá um empurrão. Quando começa? Qual a hora de ir à delegacia e dizer: “Meu marido é um criminoso”? Quando a violência se instala, o processo está tão aprofundado que é muito difícil de se desfazer.

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