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Entrevista com Amana Mattos

Atualizado: 18 de mar.




Amana Mattos é professora adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Seu trabalho versa sobre Psicologia do Desenvolvimento e Psicologia Política, abordando temas como “juventude e adolescência”, “liberdade”, “teoria feminista” e “subjetivação política”.


Nessa entrevista, Amana fala sobre perspectivas positivas e sobre desafios para a escola, profissionais e sistema de educação, que levam em conta o cuidado, questões de gênero e o surgimento de novas tecnologias.


1) Para você, qual a importância de uma formação de professores que leve em conta questões de gênero?


Professoras e professores ocupam lugares de transmissão de conteúdos e valores na escola. Entendo que, por essa razão, suas posturas em relação às questões de gênero têm forte impacto na subjetivação de crianças e jovens. Hoje, quando falamos de “questões de gênero” na escola, é comum pensarmos na homo e na transfobia, que são problemas graves em nossa sociedade. Mas não é só isso. Professoras e professores reproduzem cotidianamente estereótipos de gênero e comportamentos machistas nas relações com as e os estudantes sem se darem conta disso. É comum vermos educadoras e educadores dizendo às crianças que “menina não pode se comportar assim que é feio”, “menino tem que ser forte, não chorar, e jogar futebol”. São clichês que vemos se reproduzirem o tempo todo nas salas de aula e nos pátios da escola, e que contribuem diretamente para a formação de corpos e maneiras de meninos e meninas se entenderem no mundo, lidarem uns com os outros, com as diferenças.


Os cursos de pedagogia são extremamente falhos em oferecer perspectivas críticas sobre gênero e sexualidade. Quando entram nessa temática, o fazem por meio de teorias conservadoras da psicologia do desenvolvimento, que naturalizam as diferenças sexuais nos processos de socialização. Esse tipo de abordagem não dá ferramentas para professoras e professores discutirem e trabalharem a intolerância aos corpos diferentes, o machismo, a homo e a transfobia na escola e na sociedade. Vejo que é necessário trazer essa discussão para os cursos de pedagogia e para as licenciaturas e oferecer espaços de formação continuada para que as e os educadores possam discutir essas questões ao longo de seus percursos profissionais. Dá muito trabalho desconstruir ideias naturalizadas.


2) Você realiza pesquisa sobre algumas práticas emergentes na escola contemporânea. Fale um pouco sobre a perspectiva da ética do cuidado como uma alternativa à simples transmissão de conhecimento de professores/as para estudantes.


É importante sublinhar que a discussão que faço sobre a ética do cuidado está totalmente inserida no campo das teorias feministas. Digo isso porque tenho observado um crescente interesse nesse termo “cuidado” no campo da saúde (psicologia aí incluída) e do direito, mas sem que se façam problematizações básicas sobre o cuidar. Por exemplo, muito se fala do “professor ou profissional cuidador” sem que se mencione claramente que as profissões vinculadas ao cuidado são profissões femininas. Usa-se o termo no masculino, mas na prática encontramos a professora, a psicóloga, a assistente social, a enfermeira… Essa invisibilização da mulher nessas profissões faz com que características importantes desse fazer sejam deixadas de lado. Por exemplo: faz parte do cuidado o trato com o corpo do outro, em diferentes níveis. Se estamos falando de educação infantil, isso é muito claro. A professora tem uma proximidade com o corpo das crianças que, muitas vezes, se confunde com as funções da mãe (mais uma vez, das mulheres). Por que invisibilizamos isso? Se falamos mais diretamente dessa associação mulher-cuidado, é possível, inclusive, problematizar isso. Por que há tão poucos professores homens na educação infantil? Por que nossa sociedade insiste em afirmar que homens não devem cuidar dos corpos de pessoas que estão em situação vulneráveis (crianças, idosos, doentes)? Se colocamos isso em questão, talvez possamos refletir sobre o fato de nossa sociedade interditar certos brinquedos para meninos, como bonecas, panelinhas e outros brinquedos que remetam ao universo doméstico.Voltando à sua pergunta, tenho tentado pensar como nossa escola diminui a importância das relações de cuidado entre professoras/es e estudantes, valorizando apenas a tal “transmissão de conhecimento”. Só que, para que crianças e jovens aprendam, esse cuidado é fundamental. Se pautarmos mais essas experiências, discutirmos mais isso na escola, talvez possamos descobrir caminhos que valorizem um monte de vivências escolares que não são “avaliadas” ou “pontuadas” pelos testes, saerjinhos, enens e quetais, mas que fazem parte de quem são essas pessoas que convivem na escola, que são formadas todos os anos. E, claro, poderemos discutir mais abertamente sobre as inúmeras questões de gênero que atravessam essa experiência.


3) Como é possível, no meio escolar, lidar com o surgimento de novas tecnologias interativas e em tempo real, que colocam crianças e jovens em posição de maior independência em relação a professoras e professores?


É interessante perceber que as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) são um problema para a escola na medida em que esta quer dizer de antemão o que precisa ser aprendido, conhecido, dominado. Aí, certamente, as TICs serão um problema, uma vez que crianças e jovens conseguem acessar muito rapidamente a conteúdos que professoras e professores querem dar pedagogicamente, em doses homeopáticas.Acho que é preciso reconhecer que as novas gerações vão dominar muito melhor do que seus professores os equipamentos e gadgets que estão surgindo a cada dia no mercado. Entretanto, as e os educadores podem usar essa capacidade a seu favor, engajando estudantes em atividades que exijam essas habilidades com foco no conteúdo a ser abordado na disciplina. Além disso, penso que o fato de estarmos imersos em imagens – nas campanhas publicitárias, nos jornais e portais de notícias, nos bens de consumo – abre um campo enorme de discussão para professoras e professores explorarem. É fundamental lermos essas imagens, trabalharmos as ideias que as sustentam.


Todas essas atividades exigem, certamente, preparo das e dos professores, troca com colegas que tenham feito experiências similares, discussão. Vejo que há muito o que ser conquistado no formato de nossas escolas atuais para permitir esse tipo de trabalho – mas, mesmo assim, já há muitas e muitos profissionais que desenvolvem atividades nessa direção.


4) Em que sentido enxergar o/a estudante como sujeito que tem capacidade de agir e decidir sobre o que quer da escola pode beneficiar as práticas de educação?


Nossa escola (quando digo nossa me refiro à escola moderna e, especificamente, a brasileira) está profundamente marcada pelas hierarquias que sobrepõem a autoridade de quem sabe mais sobre quem sabe menos, as hierarquias de quem é mais experiente sobre quem é menos, e, no caso da escola pública, também de classe e de raça. Essa sobreposição faz da escola um espaço pouco aberto às trocas e a negociações que ponham em questão os lugares que já estão dados.

Entretanto, o que tenho observado em minhas pesquisas em escolas é que essa hierarquização tão inabalável vem colocando em xeque a viabilidade mesmo da escola como espaço de transmissão e diálogo intergeracional. Quando professoras e professores não estão abertos a esse diálogo – porque diálogos sempre trazem a possibilidade de as posições sejam perturbadas, obviamente – vemos o acirramento de tensões, e até enfrentamentos declarados. Alunos e alunas que não querem assistir às aulas, que ficam zoando no pátio, que não se interessam pela matéria ou não respeitam professores. De sua parte, professoras e professores que abusam de sua autoridade, que humilham estudantes, ou que simplesmente “desistem” de dar aulas, comparecendo à escola mas não se dedicando ao ensino.


Certamente, crianças e jovens têm a contribuir com o que lhes é ensinado. Isso não significa que as gerações mais velhas não devam orientar as mais novas sobre o que é preciso aprender e conhecer – a aposta da transmissão escolar está pautada por essa defasagem. Mas é preciso lembrar que estudantes chegam à escola cheios de conhecimentos, referências e ideias que precisam dialogar com o que é ensinado. Muito do conhecimento e das informações que as gerações das professoras e dos professores aprenderam na escola já está ultrapassado ou caducou, mas o aprender a pensar é o que fica. Acredito que educadores precisam inventar cotidianamente formas de conversar com esses outros saberes.


Sei que falo de um quadro muito mais complexo quando estamos falando de escola pública brasileira, mas tem me chamado a atenção que a postura autoritária de professores e professoras, que muito incomoda aos estudantes, é exatamente a postura que tem sido tomada pelos governantes no que diz respeito às políticas públicas de educação. É inegável que haja um completo desrespeito da categoria docente nos atuais governos, e as greves que estão acontecendo neste momento só explicitam isso. Essa postura autoritária do governo não contribui em nada para a melhoria da educação, e arrisco dizer que ela se reproduz, muitas vezes, em sala de aula.


5) De que forma a escola que passa a tomar as relações de cuidado e diálogo entre professores/as e estudantes como prática de ensino/aprendizagem pode funcionar como um espaço de transformação de normas de gênero?


Em primeiro lugar, porque ao entender que o cuidado faz parte da formação, certas atividades passam a ser mais valorizadas. Esse entendimento não é nada fácil, especialmente porque, quando olhamos em volta, tudo nos diz que o cuidado não deve ser valorizado: professoras de educação infantil ganham muito menos do que professores do ensino médio; profissionais (na maioria, mulheres) que cuidam do espaço da escola – faxineiras, merendeiras – ganham muito menos que profissionais que transmitem conhecimentos; convocam-se sempre as mães para as reuniões sobre o dia a dia da escola (que têm tudo a ver com o cuidado com estudantes e professores) e muito menos os pais (porque há uma ideia tácita de que estes têm coisas “mais importantes” a fazer). Assim, acredito que valorizar essas práticas de cuidado – inclusive economicamente! – é uma forma de quebrar estereótipos de gênero, que não apenas demarcam lugares de homens e mulheres em nossa sociedade, mas principalmente, hierarquizam esses lugares.


Também é um meio para pensarmos que corpos a escola tem se esforçado por produzir. Meninas que têm interesses por roupas, jogos e matérias considerados “de menino” têm lugar garantido na escola?


Meninos que façam coisas consideradas “de menina” encontram espaço na escola?


Crianças e adolescentes transgêneros são bem recebidos no dia a dia escolar? Muitos estudos e estatísticas vêm nos mostrando que não. A escola ainda está muito a serviço da reprodução do binarismo de gênero, um binarismo careta e conservador, que não dá conta das inúmeras possibilidades dos sexos se exercerem e se inventarem. Mas a escola também é o lugar em que a maior parte das crianças e dos adolescentes passa boa parte do seu tempo, e onde acontecem muitos encontros, muitas trocas. Tenho apostado cada vez mais em dar espaço para essas produções, deixando que seu exercício imprevisível nos aponte direções e caminhos para a educação. Tem sido um desafio muito instigante.

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