Por Giovanna Lauro e Margaret E. Greene
O casamento é uma instituição a que a maioria da população adulta não adere de forma irrefletida. Em traços gerais, reconhece-se que os termos e condições desta relação irão alterar as suas vidas de forma profunda e que consciência e maturidade são pré-requisitos necessários ao casamento. Ao longo dos últimos cinco anos, o mundo começou a prestar mais atenção à forma como estas condições não são cumpridas, especialmente em resultado da prevalência de casamentos que envolvem crianças, na sua maioria meninas. Todos os anos, mais de 14 milhões de meninas casam antes de cumprirem 18 anos– ou seja, 1 menina a cada 2 segundos. Este número está a crescer: de acordo com estimativas do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA, na sigla inglesa) em 2030 existirão mais de 15 milhões de meninas noivas anualmente.
Apesar de meninos e meninas poderem ser vítimas de casamento infantil, as meninas são afetadas desproporcionalmente pelo casamento. Além disso, casar enquanto se é criança traz consequências graves e duradouras. As noivas crianças são duas vezes mais vulneráveis face a situações de violência doméstica do que aqueles e aquelas que casam mais tarde. As meninas estão também duas vezes mais expostas a doenças sexualmente transmissíveis como o HIV do que os meninos de idades semelhantes. As meninas também enfrentam riscos significativamente superiores de morte durante a gravidez e parto do que mulheres na faixa etária dos 20 anos – as complicações derivadas da gravidez e parte são a principal causa de morte das meninas com idades entre os 15 e 19 anos em países pobres. A ocorrência de ados-mortos e mortes de recém nascidos são 50% superiores em mães com idades inferiores a 20 anos do que quando as mulheres engravidam depois dos 20 anos. Finalmente, não raras vezes o casamento infantil impede as meninas de prosseguirem os estudos, dificultando assim a superação da situação de pobreza.
As causas do casamento infantil são complexas e frequentemente relacionadas; incluindo condições econômicas desfavoráveis, prevalência de práticas tradicionais e negação continuada de direitos humanos. Em famílias de baixa renda, a falta de alternativas econômicas contribui para esta prática, uma vez que o casamento com um homem mais velho é visto como um meio de alcançar segurança econômica para a menina e sua família. Adicionalmente, desastres e emergências podem aumentar a pressão econômica sobre os agregados familiares, tornando o casamento infantil uma prática comum em contextos em que era anteriormente inaceitável.Em muitos contextos é considerado normal que meninas casem com homens mais velhos, sendo tal prática justificada com a tradição ou costume, essencial para preservar a “honra” da família e a virgindade da menina. Em termos mais amplos, a aceitação do casamento infantil é igualmente resultado de um conjunto de normas e atitudes sociais que não valorizam os direitos humanos das meninas. Neste sentido, o casamento infantil é sintomático de tradições sociais e culturais e de crenças que negam às meninas e mulheres os seus direitos e a sua capacidade de desempenharem um papel igual em suas casas e comunidades.
Apesar dos dados serem pouco consistentes e confiáveis em alguns contextos, sabemos que o casamento infantil é uma questão global no sentido em que tem lugar em todo o mundo, entre pessoas de todas as religiões. Embora as taxas de casamento infantil sejam mais elevadas na África subsaariana e ocidental, o maior número de casamentos infantis regista-se no sudeste asiático. A sua prevalência é relativamente baixa na Europa, Leste asiático e América do norte – contudo, esta prática está longe de ser erradicada nestes contextos.
Na Europa, os países com taxas mais elevadas de casamento infantil são a Geórgia, Turquia e Ucrânia. No Reino Unido e na França, estima-se que pelo menos 10% dos adolescentes casem antes dos 18 anos. Na América Latina, grande parte da pesquisa e intervenção neste campo concentra-se na América Central. Pese embora o Brasil estar praticamente ausente das discussões globais sobre casamento civil, em 2012 foi listado entre os países com grande prevalência desta prática. Mais de 42,700 meninas com idades entre os 10-14 anos já estavam casadas de acordo com o Censo de 2010. Muitas destas uniões eram informais, uma vez que é ilegal casar com menos de 14 anos.
São necessárias análises segmentadas e multidimensionais sobre as múltiplas expressões do casamento infantil, abrangendo diversos contextos geográficos, religiosos, étnicos, educacionais e de classe. É igualmente necessária ação coordenada para dar resposta a uma das grandes injustiças do nosso tempo, e que permanece em grande medida invisibilizada, apesar da sua prevalência. A magnitude do casamento infantil é ainda mais surpreendente dada a falta de esforços concentrados na agenda global de direitos e desenvolvimento e a ausência destas meninas da vida econômica, política e social de seus países. Uma vez que as tradições e as instituições muitas vezes não tratam as meninas como cidadãs de pleno direito, as disposições legais dos direitos das meninas são irrelevantes se pessoas como nós não nos mobilizarmos e lutarmos pelo seu cumprimento.
Além de ser um fim em si mesmo, trabalhar pela erradicação do casamento infantil é também central para lidar com questões relacionadas com direitos sexuais e reprodutivos, violência de gênero, empoderamento econômico de meninas e desenvolvimento das comunidades. Embora muitos países tenham fixado idade mínima para a realização de casamentos, algumas vezes as próprias famílias desconhecem que estão a violar a lei. Em alguns países, a legislação, apesar de presente, não é acompanhada de meios adequados para a sua implementação e fiscalização. Experiências em vários contextos têm demonstrado que combinar legislação e políticas adequadas com iniciativas destinadas a mudar normas sociais pode alcançar resultados positivos – especialmente se disponibilizarem alternativas viáveis ao casamento, como educação. Um passo importante para potenciar o impacto destas iniciativas prende-se com o engajamento de homens e meninos que apoiem as meninas e que se oponham ao casamento infantil: um pai que concorda com o adiamento do casamento de sua filha; um homem jovem que decide opor-se ao casamento de sua irmã; um parente que impediu o casamento infantil; ou um homem que mudou sua opinião relativamente ao casamento infantil. Envolver homens e meninos na prevenção do casamento infantil é uma das recomendações de um conjunto recente de pesquisas que demonstram que as mulheres adolescentes se beneficiam do envolvimento de homens cuidadores. Elas tendem a ser menos vulneráveis à violência sexual, à atividade sexual precoce e indesejada e têm maior probabilidade de ter melhor autoestima e de procurar parceiros que defendam a igualdade de gênero.
Todas as meninas devem ter o direito de decidir livremente se, quando e com quem querem casar. Para que tal ideal se torne realidade, as intervenções têm de alcançar as metas do acesso à educação e a meios de sustento econômico e ir além destas, tendo como alvo as expectativas e atitudes sociais face ao casamento infantil. Ao desafiar normas sociais amplamente aceitas e engajar responsáveis-chave – como pais e lideranças religiosas e tradicionais – as intervenções devem abordar as questões de gênero e sexualidade, percebendo as meninas como seres humanos com valor intrínseco e sujeitos de direitos humanos inalienáveis.
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