Bater em criança com o objetivo de educar, punir e corrigir é uma prática aceita por muitas culturas. No Brasil, essa estratégia é utilizada com maior ou menor intensidade por muitas pessoas. Nossos bisavôs e avôs sofreram castigos físicos mais contundentes, há relatos de surras com fio, cipó, chicote, vara de marmelo, tamanco, pedaço de pau, etc. Nos tempos atuais os castigos mais utilizados são tapas, beliscões, chineladas, empurrões, palmadas, além de gritos e xingamentos. Já os socos, pontapés e queimaduras, são reconhecidos como maus-tratos, porém, toda e qualquer forma de agressão física é uma violência e ameaça o desenvolvimento físico e psicológico da criança e deve ser evitada.
O que estamos ensinando quando batemos em uma criança e as consequências dessa prática?
Pesquisas apontam que o uso de violências físicas na educação e disciplinamento familiar promove a aprendizagem social da violência, pois oferecem um modelo inadequado de os adultos lidarem com situações de conflitos, que é o uso da força, da violência.
Na maioria das vezes os castigos corporais ocorrem em momentos de descontrole, raiva, frustação, irritabilidade e impulsividade do adulto e pode trazer consequencia graves para as crianças.
Os resultados da pesquisa desenvolvida por Assis (2004) indicam que os jovens que sofrem violências intrafamiliares do tipo físico severo, psicológico e sexual são 3,2 vezes mais transgressores das normas sociais; 3,8 vezes mais vítimas da violência na comunidade e 3 vezes mais alvos de violência na escola do que os jovens cujo ambiente familiar é mais solidário e saudável.
Dois pesquisadores no Canadá – a psicóloga Joan Durrant, da Universidade de Manitoba, e o assistente social Ron Ensom, do Hospital Infantil de Eastern Ontario – analisaram 20 anos de pesquisas, incluindo uma metanálise com mais de 36 mil participantes. A conclusão: “Nenhum estudo mostrou que a punição física tem efeito positivo, e a maior parte dos estudos encontrou efeitos negativos” (2010).
Um estudo feito em 11 capitais brasileiras, realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP), aponta fortes indícios de que ser vítima de punição corporal, quando criança, estimule o uso deste tipo de punição quando adultos.
Por que enfrentar o problema?Em 1996, a OMS (Organização Mundial de Saúde), reconheceu a violência como um problema de saúde pública que afeta praticamente toda a população mundial, com graves consequências e recomendou aos Estados-Partes a implementarem ações de prevenção e enfrentamento desse problema. Dentre as diferentes manifestações de violência que afetam as crianças e adolescentes destacam-se a violência psicológica, física, sexual, negligência e abandono.
No mesmo ano, o Estudo do Secretário-Geral da ONU sobre Violências contra Crianças, consolida informação sobre as formas de violência e os diversos locais onde ela ocorre. Às próprias crianças apontam que os castigos corporais e o tratamento humilhante que sofrem em seus ambientes de cuidado e proteção, ou seja, lares, escolas, instituições de acolhimento, etc. são um problema crucial em suas vidas e precisam ser eliminados.
O castigo corporal passou a ser reconhecido como um problema a ser enfrentando e tanto a ONU quanto a OEA apresentaram recomendações aos Estados-Partes para a necessidade da proteção legal e a realização de ações preventivas.
Que ações estão sendo desenvolvidas para prevenir os castigos corporais no Brasil?Diversas organizações da sociedade civil, universidades, etc. desenvolvem projetos, pesquisas e articulações que contribuem para o fim da prática dos castigos corporais em nosso país, como por exemplo, o Cendhec, o Claves/Fiocruz, o Crami, o Laprev, o PIM – Programa Primeira Infância Melhor, a Rede Nacional Primeira Infância, etc.
A Rede Não Bata Eduque é um movimento nacional que busca enfrentar os castigos corporais contra crianças e adolescentes e desenvolve campanhas de sensibilização, distribui material de comunicação para pais e responsáveis, conselheiros tutelares, profissionais da educação infantil, organizações da sociedade civil, operadores do Sistema de Garantia de Direitos, etc., busca disseminar praticas positivas de educação, participa de debates e incide politicamente para que o Estado e a sociedade brasileira reconheçam o problema e possam desenvolver ações que contribuam para a mudança cultural necessária e apoiem as famílias na construção de uma educação sem violência.
Na tentativa de enfrentar os castigos corporais, o governo brasileiro, encaminhou para o Congresso Nacional o projeto de lei Nº 7672/2010. A proposta ficou conhecida como a “Lei da palmada” e contribuiu para que o tema entrasse no debate nacional, suscitando opiniões contrárias e favoráveis.
Vale ressaltar que o governo e o congresso brasileiro estão cumprindo sua responsabilidade ao trazerem à tona essa discussão e em propor ações que possam contribuir para a mudança cultural necessária materializada através de um projeto de lei – para que o direito à integridade física e psicologia das crianças e adolescentes possa ser garantido. Um argumento contrário muito utilizado é que o projeto é uma interferência do Estado na vida privada das famílias, já que os pais têm o direito de educar da forma que bem entender seus filhos.
Em contraponto a esse argumento recordamos que quando a Lei Maria da Penha foi apresentada esse tipo de discussão também veio à tona. Quem não recorda do dito “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher!”, pois bem, hoje a Lei Nº 11.340/2006 é reconhecida pela sociedade brasileira como um avanço no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres. A lei tem sido um instrumento importante na proteção da integridade física e psicológica das mulheres.
Crianças e adolescentes também têm o direito de não sofrer qualquer tipo de violência em seu processo educativo e de cuidado, incluindo a violência intrafamiliar. O PL 7672/2010 propõe o reconhecimento desse direito, nada, além disso.
Um argumento religioso também tem sido utilizado para criticar a proposta de adequação legal. Alguns provérbios do Velho Testamento (10:13; 23:13,14; 26:3; 29:15) apresentam a “vara” como instrumento de castigo físico, porém, lideranças religiosas em prol da paz veem debatendo essa questão e sugerem que a interpretação do “uso da vara” seja trazido para o contexto atual e que as pessoas leiam a Bíblia com o olhar de Jesus Cristo, que rompe com diversas tradições do velho testamento e propõe o amor, o perdão, o diálogo e demonstra uma atenção toda especial para com as crianças.
Após uma intensa agenda de debates o PL foi aprovado, por unanimidade, em uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados e será encaminhado para o Senado e se aprovado, segue para a sanção presidencial.
Como movimento social, somos favoráveis à aprovação da Lei 7672/2010, por considerá-la um marco histórico no enfrentamento dos castigos corporais contra crianças e adolescentes, por apresentar uma proposta preventiva e de apoio às famílias, promover campanhas de sensibilização e divulgação de práticas positiva de educação e visa colaborar para a construção de uma sociedade menos violenta.
Um caminho a percorrerNo Brasil, já superamos o uso de instrumentos de punições físicas no ambiente escolar, tais como: a palmatória, ajoelhar no milho, ficar de costas para a parede por horas, etc.
Para superar o uso dos castigos corporais nos ambientes de cuidado e proteção e privilegiar práticas não violentas na resolução de conflitos é preciso reconhecer crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e não como seres subordinados aos adultos que acreditam ter o “direito” ou até o “dever” de bater nelas.
É imperativo promover uma educação positiva, que não utilize qualquer forma de violência física e psicológica e privilegie o desenvolvimento físico, emocional e social de crianças e adolescentes de forma saudável e participativa. Para isso, é preciso uma combinação de campanhas informativas, legislação, oferecimento de serviços de apoio às famílias, qualificação continuada dos profissionais da rede de proteção.
Prevenir a violência física e psicológica contra crianças é um dever de todos nós e juntos seremos capazes de consolidar a mudança cultural tão necessária onde o diálogo, afeto e respeito sejam a base do processo educativo e de cuidado de crianças e adolescentes.
Fonte:
CIDH/OEA – Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos. Relatório sobre o Castigo Corporal e os Direitos Humanos de Crianças e Adolescentes. Relatório sobre os direitos da infância. 2009.Disponível em: <http://www.cidh.oas.org/pdf%20files/CASTIGO%20CORPORAL%20PORTUGUES.pdf>.
ONU. Organização das Nações Unidas. Estudo Mundial das Nações Unidas sobre a Violência contra Crianças. 2006. Disponível em: <http://www.unviolencestudy.org/>.
DURRANT, J. E. Castigos corporais: preponderância, preditores e implicações para o comportamento e desenvolvimento da criança. In: HART, S. N. (Org). O caminho para uma disciplina infantil construtiva: eliminando os castigos corporais. São Paulo: Cortez, 2008.
WILLIAMS, L.C.A.; MALDONATO, D.P.A.; ARAUJO, E.A.C. (Org.). Educação positiva dos seus filhos: projeto parceria. São Paulo: Universidade Federal de São Carlos/Departamento de Psicologia, 2008.
Site: www.naobataeduque.org.br
Marcia Oliveira – Coordenadora da Campanha Permanente Não Bata, Eduque. Trabalha há 20 anos na área de defesa dos direitos de crianças e adolescentes com especialização pela Universidad Nacional Mayor de San Marcos no Peru em Direito ao não castigo físico e novos paradigmas da infância.
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